terça-feira, 21 de setembro de 2010

Escolher o caminho


São raros os casos, mas acontece algumas vezes que um excelente jogador de futebol seja um homem que não goste de jogar futebol. Nessas ocasiões, as bancadas de todos os estádios do mundo vertem lágrimas de tristeza e incompreensão pela existência de pessoas assim. É sempre um dia triste quando temos que reconhecer a sua existência. Homens a quem foi dado um dom que, a nossos olhos, surge desaproveitado. Mas esses homens escolhem os seus caminhos e Tiago Neto escolheu o seu.
Tiago Neto começou a jogar, bastante jovem, no Grupo Desportivo Serra da Vila. É um daqueles clubes que nem nos distritais se encontram. Disputam torneios amigáveis durante o ano, nas aldeias vizinhas, e pouco mais. Tiago começou por lá e logo deu nas vistas num torneio disputado na cidade de Torres Vedras. Daí a passar para a equipa de Juvenis do União Torreense foi um saltinho. Tiago saltou e lá estava. Um pé esquerdo com um remate de canhão num corpo maciço pleno de força.
Mas Tiago sempre preferiu outras coisas. Andar atrás das miúdas do Liceu, por exemplo. Ele frequentava a Escola Técnica mas nada lhe dava mais gozo do que ficar ali pela Rua da Escola a ver as meninas que saíam do Liceu. Elogiava-lhes as saias, metia conversa. Não era muito dotado para as meninas mais exigentes e estudiosas. Mas várias delas lá lhe iam deixando escapar um olhar, garantia mais do que suficiente para uma dança no próximo baile da associação.
A sua fama de jogador, entretanto, crescia. Já toda a cidade sabia que nos Juvenis, e mais tarde, nos Juniores do  União Torreense, havia craque. Os resultados das equipas iam confirmando o boato, já que conseguiam ir longe nos campeonatos nacionais de cada categoria, primeiro, nos juvenis, só sendo eliminado pelo Benfica, e no ano seguinte, no Nacional de Juniores, ficando pelo caminho nas mãos do Sporting, os grandes de Lisboa, imbatíveis naqueles idos de 70.
A escola pouco dizia a Tiago. Limitava-se a cumprir com o básico para ir passando de ano. Estudar, não estudava. Tinha o irritante hábito, sobretudo para a sua mãe, uma católica de missa diária, de ir pedir à Nossa Senhora da Pena para o ajudar em vésperas de testes escolares. A verdade é que isso ia resultando, portanto, entre os livros e a caminhada trimestral ao Alto da Pena, ganhava a caminhada. Para desportista, custava bem menos.
Os anos passaram, e depois do tirocínio habitual dos rapazes saídos das camadas jovens, com empréstimos a clubes de divisões inferiores (a saber: Grupo Desportivo Sobreirense e Grupo Desportivo de Runa na Distrital de Lisboa, Sport Clube Escolar Bombarralense, na Terceira Divisão Nacional), conjugados com várias aparições no Campeonato de Reservas, Tiago teve finalmente lugar oficial no plantel do Sport Clube União Torreense, na época de 1977/78. Nesse ano, o União Torreense conseguiu subir de divisão, Tiago Neto foi utilizado numa dezena de jogos, mas aquele que prometia ser um grande jogador, era agora uma sombra infeliz daquilo que parecia querer o seu pé esquerdo quando a bola lhe chegava perto.
Na vida de Tiago tinham acontecido várias coisas. Um emprego das nove às cinco como vendedor imobiliário, um casamento, as viagens com os amigos para ver o Sporting nas competições europeias, os almoços de família, a organização das festas da sua terra, a participação em alguns desses torneios que se disputam pelas aldeias, com a camisola amarela e o calção preto do Grupo Desportivo  Serra da Vila. Tiago Neto gostava de estar entre os amigos, era só isso que ele queria. E quando começou a nova época, no regresso do União Torreense à Segunda Divisão Nacional Portuguesa, Tiago já havia decidido que não queria ser jogador de futebol. Só ainda não descobrira como transmitir isso à Direcção e ao Treinador da equipa.
Nesse ano de 79, Tiago ia ser pai pela primeira vez. E já lhe sobrava cabeça para pouca coisa senão a ideia de ter essa criança nos braços. Cada vez era mais utilizado, a maior parte das vezes como suplente, até marcara alguns golos no campeonato. Mas Tiago Neto não gostava de jogar futebol e ia ter um filho. O que poderia ser mais importante? No dia 24 de Fevereiro de 1979, o União Torreense recebia em casa o Caldas Sport Clube, para mais um derby do Oeste português. Tiago Neto foi chamado para ser titular, mesmo sabendo que a sua mulher já estava em trabalho de parto no Hospital Distrital de Torres Vedras.
Devem ter sido os piores quarenta e cinco minutos da carreira da grande promessa Tiago Neto. E quando faltavam menos de cinco minutos para o intervalo, Tiago Neto avistara a sua sogra atrás da baliza do Caldas Sport Clube, na entrada sul do Estádio Manuel Marques, o que só podia querer dizer uma coisa. O seu filho tinha nascido. Nem foi preciso o treinador dizer que Tiago ia ser substituído. Mal o árbitro apitou para o final da primeira parte, Tiago correu aos balneários, vestiu o fato de treino por cima do equipamento e correu para o Hospital. Ia ter finalmente o seu filho nos braços.
O seu filho que nunca seria um jogador de futebol mais do que medíocre. Mas que manteve esse desejo para toda a vida. Acontece muitas vezes, encontrarmos homens que adorariam saber jogar futebol, mas não sabem. 

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