Enrique Vicenç viveu sempre no
bairro de Sarriá, à sombra do estádio do Real Español, seu clube de razão e
coração, como ele gostava de dizer. O Real Español é a maior equipa de
Barcelona, se exceptuarmos uma outra, da qual Enrique nem se atrevia a dizer o
nome. Desde bem pequeno, era vê-lo a correr para as bancadas do Sarriá (que
também era o nome do estádio), a vibrar pela equipa das camisolas azuis e
brancas, a gozar as vitórias e a chorar as derrotas do seu clube. Não espanta
por isso que, mal teve idade para tal, Enrique Vicenç se tenha tornado jogador
do Real Español.
Enrique foi sempre o jogador mais
destacado das escolas do Real Español. Para além da enorme classe que
transportava para dentro de campo, sentia também a camisola do clube como
nenhum outro. Diz-se que cedo deixou a escola para que pudesse passar mais
tempo junto do Sarriá. E então, bem novo, acumulou com a carreira de jogador
uma série de pequenas tarefas na estrutura do clube, desde engraxador de botas,
até varredor de bancadas, apanha-bolas ou mesmo técnico de equipamentos. Para
Enrique, tudo se fazia, desde que fosse no Real Español.
Na memória de todos os
aficionados do Real Español ficaram gloriosos encontros de juniores contra o FC
Barcelona (ou, os outros, como dizia Enrique), quando Vicenç pegava na bola e
se encantava a fintar todos aqueles que lhe apareciam pela frente, até voltando
atrás para fintar pela segunda vez alguns deles, antes de finalizar em golo as
brilhantes jogadas. Enrique Vicenç era um fabuloso jogador, um apaixonado pelo
seu clube, um odioso adversário dos seus rivais, e tudo isso fez com que
crescesse à sua volta uma lenda, um mito apenas semelhante aos dos mais
antigos, de que seria ele o líder do primeiro Real Español campeão de Espanha.
Era nisso que todos acreditavam.
A ambição de Enrique, por seu
lado, não era menor. É claro, ele sonhava com o dia em que pudesse festejar o
campeonato no seu Sarriá, rodeado de todas as honrarias guardadas para os
heróis dos grandes títulos. Mas também se imaginava a capitanear a equipa do
Real Español vencendo uma Taça do Rei, que lhe fugia desde 1940, ou então
conquistando uma taça europeia, a Uefa, a das Taças, a dos Campeões até,
fazendo o nome do seu clube brilhar entre os melhores do mundo. Era com isso
que Enrique sonhava, ele que era o melhor jogador de sempre formado no Real
Español.
Quando no início dos anos oitenta
se tornou profissional, Enrique Vicenç estava mais perto do que nunca de
cumprir o seu sonho. Tudo se confirmava, agora, daquilo que se esperava deste
jovem jogador. Os brilhantes jogos no campeonato, as incríveis lutas nos jogos
da Taça do Rei, as chamadas à selecção. Enrique era o pólo da atenção de todos
aqueles que viam os jogos do Real Español . Depois de anos de lutas infrutíferas,
em 1988 chegou a grande oportunidade de Vicenç.
Depois de eliminar AC Milan, Inter de Milão, Viktovice e Club Bruges, o
Real Español chegou à final da Taça Uefa para enfrentar o Bayer Leverkusen.
No dia 4 de Maio de 1988, 42000
pessoas enchiam o Estádio Sarriá. Enrique Vicenç saiu em ombros, depois de
marcar dois golos na vitória de 3-0 da sua equipa. Os de Barcelona sorriam com
a possibilidade tão próxima de conquistar um troféu europeu. Muitos deles foram
até Leverkusen para o jogo da segunda mão. A realidade nunca foi tão dolorosa
para os adeptos do Real Español. Com uma primeira parte a cumprir as
expectativas, os espanhóis acabaram por sofrer três golos na segunda parte,
perdendo no desempate das grandes penalidades. Pior que tudo, foi Enrique Vicenç
que falhou a última penalidade.
Ele tinha 26 anos e abandonou o
futebol. Quando no final do Verão de 88 a equipa do Real Español voltou aos
treinos, Enrique Vicenç não apareceu. Os adeptos, apesar da desilusão de
Leverkunsen, acreditavam ainda que seria Enrique o líder das conquistas do seu
clube e esperavam que ele não os decepcionasse na próxima oportunidade em que
chegassem a uma final. Viam-no passar na rua, sempre um pouco cabisbaixo, e
muitos acreditam que ele passeava em volta do Sarriá em dias de jogo, como se
tentasse ganhar coragem para voltar a entrar no estádio que tinha papel
principal em todos os seus sonhos.
Os adeptos sofriam com esta opção
de Enrique. E embora isso não os tenha consolado, um texto de Pere Gimferrer na
revista Destino orientou-os. Comentando que a carreira de Vicenç estava
encerrada para sempre, dizia Gimferrer: “Mas nos olhos (de Vicenç), mais
serena, pulsa a mesma chispa: um fulgor visionário, agora secreto na sua lava
oculta […]. Para lá do imediato, pressente-se um surdo rumor de oceanos e
abismos: Vicenç continua pelas noites sonhando jogadas e golos, embora já não
os marque.”
Futebol não jogado, mas vivido
pela mente: um final belíssimo para alguém que deixa de jogar.
(Nota: os dois últimos parágrafos
são uma transcrição, modificada, de outros dois parágrafos do livro Bartleby
& Companhia, de Enrique Villa-Matas.)