Era uma vez um rapaz, Jesús
Cravero, a quem todos destinavam um grande futuro como futebolista. Jesús
nasceu em Gerli, nos arredores de Buenos Aires, em 1966, filho de um negociante
de sabão e velas, indústrias que por ali haviam instalado as suas fábricas.
Jesús dividia o seu tempo entre a escola, à qual não podia faltar nunca, dado o
seu pai ver na escola a garantia do futuro dos filhos, e as ruas onde jogava
futebol com os seus amigos. Como nunca chumbara em nenhum ano, conseguiu ganhar
autorização parental para ir treinar no Clube Atlético Lanús, uma das famosas
escolas de talentos argentinos no jogo da bola no pé.
Jesús começou a sobressair logo
nos primeiros treinos e isso garantiu a sua entrada na equipa. Apesar de um
pouco franzino, Jesús tratava a bola como ninguém, executando fabulosos passes
a qualquer distância, com a capacidade de fazer chegar a bola direitinha aos
pés dos colegas. O entusiasmo crescia à volta deste pequeno talento e todos
esperavam que o seu crescimento acompanhasse o regresso do Lanús à Primeira
Divisão Argentina, depois de alguns anos pelas divisões secundárias. Jesús
começou também a ser chamado às selecções juvenis, causando algum impacto nos
torneios sul-americanos.
A carreira de Jesús iria, no
entanto, ser bem mais difícil do que aquilo que ele poderia imaginar. Depois do
seu último ano de júnior no Lanús, passou uma época inteira a treinar com a
equipa de reservas, dado que o treinador dos seniores esperava que ele ganhasse
mais massa muscular, antes de o lançar às feras. A sua carreira escolar, que já
não era famosa com as constantes viagens, jogos e treinos, passava agora uma
fase negra, dado o desânimo e o cansaço físico que tal programa causava em
Jesús. A decisão do pai Cravero não se fez esperar: acabava-se a ideia do
futebol profissional para ocupar o tempo a estudar para os exames de acesso à
universidade.
Jesús aceitou a decisão do pai,
ainda que inconformado com a ideia de não vir a ser profissional de futebol. E
a verdade é que conseguiu fazer todos os exames e aceder à Universidade no
início de 1986. Em casa, o ambiente era agora de reconciliação, tanto que,
convidado pelo director da equipa local, o El Porvenir de Gerli, Jesús voltou
aos campos para disputar o Torneio de Abertura de Reservas da Primeira B da
Argentina. A equipa alvi-negra não tinha grande história, mas o seu estádio
situava-se no mesmo bairro onde vivia a família Cravero, sendo que a
proximidade de casa era uma das razões que fazia com que todos, inclusive o seu
pai, acompanhassem com fervor as partidas de Jesús.
Mais uma vez Jesús entusiasmava
os adeptos, ainda que disputasse um campeonato de nível inferior. Tentando
sempre escapar às entradas maldosas dos adversários, Jesús não deixava de ser o
craque da equipa, com os seus passes, as suas fintas, os seus remates de fora
da área. O seu ar franzino enganou adversários por pouco tempo, pois logo se
espalhou a palavra de que o rapazinho de Lanús andava agora por aqueles lados. A época começou no início de Fevereiro e
durante a primeira fase, o El Porvenir só perdeu um jogo. Dos 31 golos marcados
pela equipa, dez foram da autoria de Jesús, que era assim o melhor marcador da
equipa. Todos acreditavam, nesse momento, que o El Porvenir ia conseguir ganhar
o título.
1986 foi um grande ano para o
futebol argentino. No México, enquanto Jesús Cravero disputava o Torneio de
Abertura, a Selecção Nacional mostrava-se ao mundo liderada por Diego Armando
Maradona. A euforia saía à rua sempre que a Argentina disputava uma partida,
sendo que todos assistiam, colados aos televisores, às façanhas protagonizadas
pelo pequeno génio. Jesús Cravero imaginava-se assim, um dia, a voltar a vestir
a camisola alvi-celeste num Mundial, a ser idolatrado por todos, capaz de
percorrer relvados inteiros, levar a sua equipa às costas, quem sabe ser
campeão e levantar a taça na tribuna de um estádio.
No dia 22 de Junho de 1986,
Maradona protagonizou um dos lances mais polémicos da história do futebol. No
início da segunda parte do jogo frente a Inglaterra, Maradona correu entre os
defesas ingleses, a bola ressaltou para em direcção a Valdano, mas foi
interceptada por um defesa que a pontapeou para o ar. Aí o tempo parou.
Maradona e Peter Shilton saltaram juntos para alcançar o esférico e, no momento
seguinte, era golo da Argentina. Jesús ficou siderado com aquele golpe de
génio, que o próprio Maradona chamou de “mão de Deus”. Nesse dia, os festejos em
Gerli foram mais comedidos porque uma outra importante data estava agora mais
perto do que nunca.
O Torneio de Abertura de Reservas da Primera B
decidia-se numa final a duas mãos, entre os vencedores das respectivas séries.
No dia 26 de Junho, o El Porvenir deslocou-se ao campo do Desportivo Italiano,
para disputar a primeira mão. Com o resultado empatado a zero, cumpria-se o
trigésimo minuto da partida quando, ressaltando a bola num defesa da equipa da
casa, Jesús Cravero saltou com o guardião adversário e, ajeitando a bola com a
ponta dos dedos, marcou o primeiro golo da sua equipa. Jesús correu pela linha
de fundo gritando “é a mão de Jesús, é a mão de Jesús”, mas, nas suas costas, o
bandeirinha dava sinal de anular o golo. “Chega-nos acreditar na mão de Deus” –
disse-lhe o árbitro ao mostrar-lhe o cartão amarelo.
Durante o resto da partida, Jesús
foi assobiado a cada vez que tocava na bola. Saiu de campo cabisbaixo, não
querendo sequer festejar a vitória da sua equipa, que viria a conquistar o
título. Jesús sabia já o que o esperava. Percebera que ao intervalo o seu pai
tinha abandonado o estádio, incapaz de assistir à vergonha de ver o seu filho
ser tratado como um criminoso. No fundo, ele apenas tentara homenagear o génio,
mas tal audácia não lhe havia sido perdoada. O seu pai não lhe falou durante
uma semana inteira. Durante essa semana, Jesús Cravero apresentou-se no treino
da sua equipa apenas para avisar de que abandonaria o futebol para sempre.
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