quinta-feira, 21 de julho de 2011

As luvas de Mcghee


Franck Mcghee tinha tão interiorizado em si o facto de ser guarda-redes que usava sempre luvas. Os seus colegas achavam curioso que aquela torre australiana tivesse hábitos tão estranhos. Mas ele era o melhor guarda-redes da história do Mohun Bagan AC, a equipa de futebol de Calcutá, também conhecida como os “Marinheiros”. E era isso que lhe perdoava todas as excentricidades. Franck “The Glove” Mcghee defendia como ninguém a baliza do clube que, entre os finais dos anos setenta e o início dos oitenta, dominou o futebol da região de Calcutá e de toda a Índia.
O caminho que este australiano fez até chegar a ser guarda-redes na Índia não é feito de evidências. Franck era descendente de irlandeses, todos eles ligados ao comércio marítimo na cidade de Perth, na costa oeste da Austrália. Dizia-se, em meados do século XX, que em cada esquina do porto de Perth havia um Mcghee. Isso fazia com que o  sentido de pertença ao lugar fosse algo que estava marcado, como ferro em brasa, em cada criança que nascia no clã. O problema de Franck era o facto de, no seu caso, a sua pertença ao clã ser, no mínimo, desconfortável. Fruto de uma relação ocasional entre um Mcghee e uma jovem que trabalhava num dos pub’s do porto, a sua marca provocava-lhe mais comichão do que orgulho.
Talvez fosse por isso que, desde muito novo, Franck sonhou fugir daquela cidade. Como é costume dizer-se, de Perth não se pode fugir por terra, dado o facto da cidade estar próxima do imenso deserto australiano. Daí, a Franck restava apenas a opção marítima. Devia ter treze ou catorze anos quando se apresentou a um capitão de embarcação inglês e se tornou marinheiro. Bem, talvez não marinheiro, mas um moço que ia no barco para fazer todo o tipo de serviços que aparecessem. E Franck, que mesmo jovem era já enorme, com perto de dois metros, não se negava a nenhuma tarefa. Foi assim ganhando o apreço dos ingleses e escoceses que, com ele, partilhavam a vida, sendo também com eles que começou a jogar esse desporto tão estranho à maioria dos australianos. O futebol.
A embarcação passava mais de metade do ano pelo Índico, a transportar bens, sendo que no fim desse período regressava a Inglaterra, onde passava o mês de Dezembro. Para Franck Mcghee tanto lhe fazia se o levavam para trás ou para a frente, coisa que ele não queria era regressar à Austrália. Foi assim conhecendo mundo, ora passando esse mês de férias em Inglaterra, com algum dos seus colegas, ora ficando pela Madeira, Cabo Verde, Angola, África do Sul, gozando de umas férias mais veraneantes do que aquelas que estavam reservados aos restantes, entre familiares e Natal. Por todos os lugares onde passava, Franck, fosse ou não com os seus colegas, não perdia a oportunidade de se exercitar na defesa de redes de balizas de futebol. O seu tamanho convidava-o sempre para essa posição, e a verdade é que, com a bola nos pés, o nosso homem não teria lugar em equipa alguma.
Era duro o trabalho no barco e habituais os acidentes. Para Franck, chegou o dia trágico em que perdeu três dedos da mão direita, presos a uma das cordas que manejava para prender uma série de volumes que se soltavam no meio das ondas do Índico. A maior tragédia prendia-se com o facto de, estando em mar alto, não haver maneira de preservar os dedos, tendo que esperar três dias até aportar em Calcutá para poder tratar e manter o resto da mão em bom estado. Franck sabia que aí acabava a sua carreira de marinheiro – de alguma forma, um tarefeiro sem dedos é algo de pouco préstimo para a tripulação de um barco – o que ele ainda não sabia era que começava aí a possibilidade de ser um futebolista.
Ficou em Calcutá quando o barco partiu, de novo, em direcção a oeste, esperando melhor oportunidade para continuar a sobreviver. E ao fim de poucos dias foi surpreendido por Badru Pal, um dos jogadores do Mohun Bagan, que se lembrava de o ver jogar em vários jogos no porto de Calcutá. Havendo falta de guarda-redes no clube, nem ocorreu a Franck tirar a luva que lhe escondia a falta de dedos, aparecendo ao primeiro treino, defendendo como era seu costume, todas as bolas que almejavam as redes da sua equipa. Foi contratado para a equipa que disputaria, nesse ano de 78, a Taça da Federação. E o sucesso foi tão grande que por lá continuou a dar alegrias aos Indianos.
À taça de 78, juntou as taças de 80, 81 e 82. Também venceu a Liga de Calcutá em 78, 79, 83 e 84. E ainda a IFA Shield, em 78, 79, 81 e 82. Ao todo foram sete anos a defender a baliza do Mohun Bagan AC, anos em que não lhe fizeram falta os dedos para ser considerado o grande guarda-redes da história do clube. Franck “The Glove” Mcghee tornou-se uma lenda em terras indianas. E quando, no fim da sua carreira de futebolista, voltou a Perth, a sua cidade não era mais o reduto dos irlandeses, mas um local cheio de gente de todo o mundo, o lugar onde Franck se sentia bem, por conjugar a terra que era sua, com a variedade de olhares, cheiros e línguas a que se habituara nas viagens pelos mares do mundo.
Nunca, na Índia, único lugar onde foi um futebolista federado, chegaram a saber da falta de dedos na sua mão direita. Franck Mcghee tinha tão interiorizado em si o facto de ser guarda-redes que, por isso, pensavam os seus colegas, usava sempre luvas. Todos  achavam curioso que aquela torre australiana tivesse hábitos tão estranhos. Todos o admiravam pelos seus feitos. Franck Mcghee foi, de facto, um guarda-redes feliz. 

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