sexta-feira, 29 de julho de 2011

O pior


Nenhuma outra opção  resta a um jovem jogador de futebol quando nasce na grandiosa pátria futebolística que é o Brasil, ser o maior ou não ser ninguém. No entanto, Eduardo Pereira Barcelos tinha um plano diferente. Nascido em Recife, capital de Pernambuco, Dudinha, assim era conhecido por todos, foi seleccionado para a equipa de jovens do Santa Cruz Futebol Clube. O seu apelido só podia ser brincadeira, pois Dudinha era o maior da sua turma. Um rapaz grande em todas as direcções. Por isso mesmo, jogava como defesa central, e batia, batia muito, em tudo o que mexesse perto da área da sua equipa. Isso tornara-o um jogador mais do que temido, uma lenda do futebol jovem de Pernambuco.
Foi subindo de escalão até ter a oportunidade de jogar na equipa principal do Santa Cruz. No início dos anos setenta, o Terror do Nordeste ganhava campeonato atrás de campeonato estadual. Dudinha, enorme defesa central, cheio de vontade e sem pingo de caridade, era chamado a entrar no relvado sempre que o assunto era pega de caras. Ele entrava, pegava, e a assistência aplaudia extasiada a violência do menino. Ainda assim, Dudinha jogava poucas vezes. Até porque era mais do que normal ver cartões vermelhos, tal a brutalidade com que ele defendia a camisola tricolor. Assim, mesmo que fosse o ídolo de parte da torcida, mesmo que tivesse sido três vezes campeão estadual, foi uma das primeiras vítimas da renovação da equipa.
Parecia então que as opções de Dudinha se tinham estreitado ainda mais. Dispensado do Santa Cruz, impossibilitado de ser o maior (nem que fosse do seu estado), o nosso craque parecia agora dirigir-se para aquele lugar onde não se é ninguém, imenso cemitério de prometedores jogadores de bola, aviadores das áreas, voadores frangos das balizas, incapacitados técnicos de acumuladas derrotas. Era tão triste o seu destino que chegou mesmo a colocar a hipótese, no Verão de 74, de deixar de jogar futebol. Dudinha era grande, era enorme, mas se isso não chegava para honrar a camisola da sua equipa de sempre, teria que servir para qualquer outro emprego. No entanto, a sorte não estava com ele. E durante quatro meses, nem futebol, nem emprego para Dudinha.
Iniciado o Estadual do Pernambuco há já algumas semanas, criou-se a oportunidade para Dudinha voltar aos relvados. O Íbis Sport Clube carecia de um defesa central de qualidade inquestionável para travar a avalanche de golos que sofria em cada partida. Então Dudinha foi lembrado por alguém na bancada, palavra que chegou aos ouvidos de um dos Directores, que questionou o Treinador, e ao fim de alguns momentos todos pareciam estar de acordo que esse era o homem de quem eles precisavam. Assim se fez a apresentação, com direito a jornalistas e tudo, Dudinha deixava o desemprego e vestia uma nova camisola tricolor (em tudo semelhante ao do seu Santa Cruz), com a vantagem de, nesta, não encontrar um número daqueles que sobravam para  se sentar no banco, mas o ilustríssimo número 3, seu número para a vida de titular entre os Gaivotas.
Já nesse tempo o Íbis Sport Clube gozava de um estatuto pouco invejável, o de ser um dos piores clubes do campeonato. Com a chegada de Dudinha, as esperanças de que isso se alterasse não viram, também, a luz da manhã. Na verdade, Dudinha aplicava-se, cada vez mais, no desporto da cerveja e do churrasco, sendo que a sua envergadura futebolística era apenas uma leve pena, se comparada com a monumentalidade do seu peso. Mas, ainda assim, Dudinha entrava em campo e batia no que podia, mesmo quando podia pouco. Felizmente havia intervalo para que ele pudesse beber uma ou duas cervejas geladinhas, restabelecendo assim o equilíbrio de suas pernas e de sua visão de jogo. A cada semana, a derrota apresentava-se como assunto impossível de ultrapassar, mas foi por isso mesmo que, entre todos, jogadores, associados e directores, cresceu a vontade de tornar a sua falta de qualidade no seu principal trunfo.
Quando se joga futebol na grandiosa pátria brasileira, as opções entre ser o melhor ou não existir, encontrava agora uma terceira via: ser, não só, a pior equipa do campeonato, mas, acima de tudo, a pior equipa do mundo. Para isso, Dudinha seria uma peça de alta qualidade no centro da defesa, acompanhado por outra grande lenda do Íbis, Mauro Shampoo, futebolista, cabeleireiro e homem, de quem já muito se escreveu nas mais encantadoras páginas do futebol mundial. A verdade é que, quando a equipa do Íbis deixou de tentar ser menos má, começou realmente a despertar a atenção do mundo inteiro. Jogo após jogo, as derrotas acumulavam-se, cada vez com mais golos contra e menos golos a favor. Este caminho começou em Julho de 1980, quando, depois de uma vitória sobre o Ferroviário, o Íbis só voltou a vencer no dia 17 de Junho de 1984. Mesmo antes dessa vitória, o Íbis já tinha acumulado outras dezanove derrotas.
Durante esses fabulosos anos, o clube marcou apenas 25 golos, tendo sofrido 231. Algumas notas são bem curiosas. Mauro Shampoo, ponta-de-lança durante dez anos, marcou apenas um golo desses vinte e cinco, um golo que o tornou numa lenda apenas comparável ao Rei Pelé. Dudinha, o nosso craque, também marcou um desses golos, numa das complicadas subidas à área adversária, onde depois de vários desencontros com a bola, esta beijou a sua canela e ganhou a direcção do golo. No entanto, Dudinha assegurou também sete golos na sua própria baliza. Uma marca invejável para todos os defesas centrais do mundo. A verdade é que muitos outros tentaram ser tão maus como Dudinha, mas nenhum conseguiu. Dudinha, honrado titular da pior equipa do mundo, foi o seu herói durante anos e anos seguidos. Resiste na memória de todos nós, por ter alcançado aquilo que quis: ser, magistralmente, o pior. 

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