Martin Olesen nunca seria um
rapaz de quem se diria poder vir a ser um jogador de futebol. Desde pequeno que
Martin era o mais gordinho da sua turma, usava uns óculos bem graduados, era,
até, o objecto do gozo de todos os seus colegas. Martin passava imenso tempo
sentado à beira do campo de futebol da sua escola, onde os outros rapazes
jogavam todos os dias com grande animação. Não se poderá dizer, ainda assim,
que Martin fosse um rapaz infeliz. Aqueles dias, junto ao campo, davam-lhe cada
vez mais a certeza de que o seu dia de glória haveria de chegar.
Quando completou doze anos,
apresentou-se num treino de captação do Vejle BK, a equipa da sua cidade. A sua
técnica era pobre, mas como tinha crescido bem mais que os seus colegas, os
treinadores consideraram que ele seria uma boa aposta. Teria que trabalhar
bastante para poder jogar na equipa, mas só o facto de acreditarem nele fez com
que Martin sentisse que tudo aquilo com que sonhava era, realmente, possível.
Ainda assim, a sua carreira no Vejle era feita de muito treino e poucos jogos.
Raramente era chamado para jogar no campeonato. O treinador incentivava-o a
treinar mais, a perder peso, Martin acreditava, mas não jogava.
A vida não era fácil para Martin.
Pelo menos enquanto futebolista. Os treinadores apostavam nele, ano após ano,
como se fosse uma missão de todo o clube. Martin continuava a estudar, a ocupar
os seus dias a ver os colegas jogar futebol, a ver todo o futebol que podia na
televisão. Estando já bem perto de terminar a sua formação como futebolista,
Martin Olesen percebia mais de futebol do que qualquer rapaz da sua idade.
Isso, parecendo que não, dava-lhe uma vantagem em relação a todos os seus
colegas que jogavam muito mais do que ele. A inteligência dentro de campo. E,
queria acreditar Martin, foi isso que o fez ser chamado para jogar na equipa
principal.
Em 1994 o treinador da equipa era
Ole Fritsen, um homem do clube, com passado de jogador e uma longa carreira na
formação. Ole Fritsen conhecia bem Martin e passou a utilizá-lo como defesa
central, sempre que, perto do final do encontro, a equipa precisava de segurar
a vantagem. Durante cinco anos, Martin foi um jogador fundamental no Vejle,
apesar de ter como colegas de equipa alguns craques, como Thomas Gravesen. Em
todas as vitórias do Vejle, Martin Olesen aparecia como o segurança do
resultado. E isso fê-lo ser também um dos jogadores preferidos da massa
associativa do Vejle. Ainda assim, quando em 1999, Ole Fritsen saiu do clube
que passava por uma grave crise financeira, Martin Olesen foi dispensado da
equipa.
A verdade é que Martin nunca se
esforçou para procurar uma nova equipa. Encontrou trabalho numa empresa de
cargas no porto de Vejle e, todos os fins de tarde, visitava o seu antigo
treinador. Com Ole Fritsen, Martin aprofundava todos os seus conhecimentos.
Percebia agora todas as movimentações dos jogadores em campo, percebia as
necessidades de um conjunto perante um adversário mais forte, percebia a
importância de todas as decisões no decorrer dos noventa minutos. Martin sabia
também que toda a sua carreira de futebolista era devida a este homem que vira
nele, mais que um potencial futebolista, um apaixonado pelo futebol, que precisava
de ser guiado e acompanhado, de maneira a fazer dele um especialista.
Não espantou por isso que a
carreira de Martin tenha acabado tão cedo e que em 2003 tenha sido apresentado
como adjunto de Ole Fritsen no Fredericia FC, uma equipa da segunda divisão
dinamarquesa. Durante dois anos partilharam o banco daquela equipa, correndo a
meio da tabela do campeonato, numa equipa cheia de juventude, como era sempre
vontade de Fritsen, apostando em jogadores da formação, desejosos de mostrar
trabalho para conseguirem proveitosos contratos na primeira divisão ou na
Alemanha, destino preferencial dos jovens jogadores dinamarqueses. No final
dessa época, Ole Fritsen decidiu dedicar-se a ser apenas olheiro do Groningen,
equipa holandesa para quem trabalhava há muitos anos. Martin foi indicado por
ele para trabalhar nos escalões de formação dos holandeses.
Martin Olesen nunca seria um
rapaz de quem se diria poder vir a ser um jogador de futebol. Mas era agora um
competente treinador, sempre muito atencioso com todos os atletas, capaz de
lhes descobrir talentos dos quais eles próprios nem desconfiavam. Continuava a
falar todos os dias com Ole Fritsen, o seu mentor. O trabalho de Martin era
reconhecido pelos dirigentes do Groningen que, apesar da sua juventude, se preparavam
para lhe renovar o contrato de treinador. Em Maio de 2008, Ole Fritsen morreu,
vítima de um ataque cardíaco. Martin ficou muito afectado pelo acontecimento,
sentindo, de repente, um enorme vazio na sua vida, um vazio que sempre ali
estivera, coberto pela presença de Fritsen. Quando, no Verão de 2008, Martin
chegou a Vejle para gozar as suas férias, a primeira coisa que fez foi visitar
a sua campa.
A notícia do suicídio de Martin
deixou bastante consternados todos aqueles que o conheciam. Não se aceita que
um jovem com uma carreira prometedora de sucessos, termine assim com a vida. No
entanto, as cartas que Martin deixou aos seus mais próximos, o seu pai, o seu
irmão, a esposa de Ole Fritsen, eram claras no motivo. Tinha sido Ole Fritsen a
tornar possível aquilo que ele era, tinha sido Ole Fritsen quem evitara que ele
fosse o rapaz gordinho, de óculos bem graduados, alvo do gozo de toda a gente.
Tinha também sido Ole Fritsen a dar-lhe oportunidade de ser jogador
profissional, treinador profissional, dando-lhe emprego nas equipas com quem
tinha ligações. Sem Ole Fritsen, a vida perdera o sentido. Ele não se sentia um
projecto de Ole. Ele sentia-se o próprio Ole. Daí ter que morrer com ele.
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