Toda a gente o apelidava de
Sandía, melancia, pois era isso que faziam lembrar as suas atitudes. Era
enganador, como a melancia que se promete verde ao nascer da terra e logo a
descobrimos vermelha fogo por dentro, como se fosse sangue. No entanto, desse
sangue nasce um frescor de água que se derrete mal toca a nossa língua. A ele,
chamavam-no Sandía por ser assim, enganador. Adrián Cruz não era homem em que
se pudesse confiar. O seu ar um tanto angelical escondia um carácter extraviado,
capaz das piores coisas para que se saísse bem numa vida que pouco lhe
prometia. Era por isso que lhe chamavam Sandía. Por isso, ou por ser originário
de Concepción, uma das zonas de maior produção de melancia do Paraguai.
Adrián Cruz começou a jogar
futebol no Deportes Concepción, uma equipa à sua imagem (ou será que foi ele
que cresceu à imagem da equipa?), com um grande historial de problemas de
violência e de desacatos dentro e fora do campo. Adrián tornou-se profissional
de futebol por um daqueles acasos do destino. Desde jovem que fazia parte da
equipa do Deportes e tinha dezoito anos quando o extremo-esquerdo titular se
lesionou. Como o outro jogador que fazia essa mesma posição na equipa sénior
estava castigado, ao treinador não restou outra opção que a de chamar Sandía
para um jogo contra a equipa do Antofagasta. Tão bem se saíu Sandía que não
mais largou a titularidade, pelo menos naquela época.
Era um jogador impossível de
defender. A sua forma de jogar confundia todos, adversários e colegas de
equipa. Tremendamente indisciplinado na táctica, Adrián cruzava o campo da
direita para a esquerda sempre à procura de fugir aos seus adversários como
quem foge da polícia (outra das coisas em que Adrián apostava o seu sucesso),
elaborava fintas nunca antes vistas pelas terras onde jogava, rematava dos
ângulos mais difíceis de forma a surpreender os guarda-redes. A isso juntava
também um inconfudível mau humor e uma enorme garra em vencer, sendo que para
tal não hesitava em entrar com os dois pés nas canelas de todo e qualquer
adversário que tentasse fugir dele.
No início dos anos oitenta, o
Deportes Concepción desceu à segunda divisão, no que seria o início de uma
época conturbada para o clube, entre insucessos desportivos e problemas
monetários. Adrián Cruz, grande jogador, tinha contra si a lastimosa fama de
jogador incontrolável. E assim, não recebendo o seu salário no Deportes e sem
encontrar quem pagasse a sua transferência, acabou por ir para o Brasil, para
Goiás, onde trabalhava em plantações de melancia brasileira. Era uma função que
conhecia dos seus tempos anteriores ao futebol, quando a bola não lhe permitia
levar algum dinheiro para ajudar em casa. E como Adrián não tinha mesmo
qualquer vergonha na cara, ser jogador de futebol ou colher melancias tanto lhe
dava, desde que pudesse ganhar o que comer.
Ainda assim, todos sabemos que
nunca um bom jogador de futebol passa incógnito, esteja em que lugar do mundo
estiver. A Adrián Cruz aconteceu exactamente o que era esperado: foi
descoberto. Num fim-de-semana em que saiu para beber umas cervejas com amigos,
acabou a brincar com uma bola, deixando toda a gente espantada com as
capacidades do seu pé esquerdo. Logo foi convidado para vestir a camisa do
Santa Helena Esporte Clube, equipa goiana que disputava a segunda divisão do
estado e nunca havia ganho título algum. Sandía tudo mudou. De repente, a
equipa conhecida como “Fantasma do Interior” aterrorizava todos os adversários.
Sandía pegava na bola e lançava a confusão à volta da área adversária, marcando
e dando a marcar infinitos golos.
O grande jogo dessa 2ª divisão
Goiana, em 1986, foi disputado entre o Rioverdense e o Santa Helena,
infatigáveis rivais. Vencendo, o Santa Helena ganharia o seu primeiro título,
acontecimento que os de Rio Verde tudo fariam para evitar. Talvez não se tenha
jogado futebol no Estádio Pedro Romualdo Cabral. Talvez não fosse da bola que
os jogadores corriam atrás, mas uns dos outros. Havia pé no pau, pau na cabeça,
pedrada para todo o lado, não só no relvado como nas bancadas. Até que ao
minuto oitenta, a bola chegou aos pés de Adrián Sandía Cruz, o melancia
paraguaia, que, verde e enorme rebolou por entre defesas com punhos e
antebraços abrindo o caminho, fez desaparecer a bola entre a promessa de sangue
e, num remate poderoso, rasgou as redes do Rioverdense. O Santa Helena foi
campeão.
Adrián tornou-se uma lenda em
Goiás, como já era no Paraguai, embora não pelas mesmas razões nem com os
mesmos efeitos. O futebol não crescia para o profissionalismo no Santa Helena,
mas ser o craque da equipa valeu-lhe muitos e bons anos a trabalhar com os
maiores produtores de melancia da região. Quando decidiu deixar o futebol, o
seu mau feitio era já ignorado, aceite, como uma valência comum aos grandes
artistas que povoam as quatro linhas em todas as partes do mundo. Também agora
a sua aparência de durão era enganadora. Foi por isso que Sandía entrou na
galeria dos mais respeitados jogadores de Goiás. Por fazer aquilo que a maioria
nem em sonhos consegue imaginar que é possível: resolver campeonatos.
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