sexta-feira, 20 de maio de 2011

Ser Futebolista


Marko Prso lembra-se bem do dia 22 de Junho de 1986. Foi o dia em que teve a certeza de que iria ser jogador de futebol. Estava na casa dos primos do seu pai, em Pristina. Um dos seus afastados primos tinha casado no dia anterior e, como era tradição da família Prso, todos se juntaram em volta desse casadoiro familiar. A família Prso estava espalhada por toda a Jugoslávia, dez irmãos nascidos em Belgrado mas divididos pelas diversas províncias, quase todos, em trabalhos ligados à administração pública. Então, nesse dia do Verão de 1986, Marko estava em frente à televisão a ver o jogo do Mundial do México, Maradona recebeu a bola ainda atrás do meio campo e correu entre uma série de adversários ingleses até, praticamente, entrar baliza dentro com a bola nos pés. Marko ia ser futebolista.
Na verdade, Marko já jogava futebol há uns anos, na escola do FK Rad. Era o clube que ficava mais perto da sua casa no Bairro de Banjica, curiosamente, no caminho para a escola que frenquentava. Quando Marko Prso revelou qualidades para ser futebolista, o seu pai decidira inscrevê-lo no clube. Digamos que o FK Rad compensava na sua escola de formação a falta de títulos relevantes no seu historial. Mas havia sido, claramente, uma escolha de proximidade. Marko Prso cresceu como homem e como jogador no relvado do Estádio Kralj Petar. O seu futebol nunca mereceu chamadas às selecções jovens porque essas eram dominadas pelos grandes clubes da cidade e pelos clubes de Zagreb. Mas foi sem surpresa que, aos 17 anos, se estreou na equipa principal do FK Rad.
Nessa época de 89-90, Marko jogou apenas três vezes na equipa. Dividia-se entre os treinos, os jogos nos juniores e a escola secundária, onde pensava conseguir colocação na Universidade. Marko era um exemplo dos jovens criados na disciplina dos regimes de leste. Desportista e estudante dedicado, conseguia, graças ao esforço da sua família e à benesse de dirigentes e professores, conciliar ambas as carreiras. A verdade é que, no final dessa época, realizou os exames necessários para se tornar estudante da Universidade de Belgrado. Na época seguinte, a vida de Marko começou a sofrer com a inconstância política do seu país. As notícias vindas dos seus familiares eram cada vez mais preocupantes e, na Universidade, Marko assistia a longos debates de estudantes oriundos de diversas repúblicas que ameaçavam, agora, declarar a sua independência.
Ainda assim, o futebol de Marko Prso encontrava espaço para sobressair. Sendo utilizado regularmente na equipa do FK Rad, Marko acabava por beneficiar do facto de vários jogadores croatas e eslovenos se recusarem a jogar na Selecção da Jugoslávia para se sentar, pela primeira vez, no banco da Selecção, no dia 16 de Maio de 1991, no jogo contra as Ilhas Faroé. Esse jogo foi tão mais significativo por, numa altura em que o território já começava a provar os primeiros dissabores da guerra, ter sido o último realizado pela equipa da Jugoslávia unificada em casa. Marko Prso voltou a ser convocado para os jogos seguintes, sempre sem ser utilizado, e esteve na concentração da Selecção que acabou por ser excluída do Euro 92.
O sonho de Marko tropeçava assim numa guerra que ele compreendia mal. No Verão de 92, o seu pai era um homem abatido, desconhecendo o paradeiro de três dos seus irmãos, algures na Bósnia ou no Kosovo. Marko Prso percebeu que, mais importante que o sonho de futebolista, era a sua família, aquela mesma família que se juntava em redor dos seus antes da guerra. Então alistou-se no Exército Sérvio e partiu para o conflito. Marko fizera isto para que o seu pai pudesse, através dele, manter-se informado do que se passava na guerra, no dia-a-dia das populações e dos militares. Uma forma de tentar sossegar o seu pai entregando-se ao suplício de lutar por algo que lhe custava definir. Era uma opção estranha, mas uma opção que todos, em sua casa, compreenderam.
Entre 1992 e 1995, Marko Prso não jogou futebol. Só quando voltou a instalar-se em Belgrado, suportando mal a notícia da morte de quatro dos seus tios e de nove dos seus primos, Marko Prso voltou a colocar a hipótese de tocar numa bola. O jovem estudante e desportista tinha ficado para trás. Ele era agora um homem, definitivamente marcado pela experiência da guerra, com a cabeça tomada pela incompreensão. Precisou ainda de muito tempo para acertar o seu passo com o passo de uma cidade em paz. Mais ainda para se sentir seguro entre outros homens e mulheres que, na verdade, não lhe queriam mal nenhum. E um outro tanto para poder voltar a vestir uma camisola e a entrar num relvado.
Em Setembro de 1999, Marko Prso foi suplente utilizado no jogo entre o Hadjuk Belgrado e o Zemun. Com a camisola branca e vermelha do Hadjuk, perto dos 80 minutos de jogo, Marko Prso dominou a bola junto à linha do meio-campo, avançou entre o surpreendido e o raivoso entre os defesas adversários e entrou com a bola pela baliza dentro. Na bancada, o seu pai e dois dos seus tios choravam. Marko Prso correu até à linha lateral, com um sorriso triste. Marko Prso sabia que era um futebolista.  

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