Adrián Guity sempre se lembrou
perfeitamente do que ouviu na Igreja de Yuscarán, no distrito de El Paraíso, no
sul das Honduras. O padre gritou a meio do sermão “fraco não pode ir para o céu”,
coisa que muito impressionou o pequeno Adrián. Podia ter-se entregue ao medo de
ser um fraco para o resto da vida, visto que as suas circunstâncias do momento
se resumiam a uma vida de dificuldades numa família pobre daquele pequeno
distrito hondurenho. Mas, daquele dramático sermão, o pequeno Adrián retirou a
vontade de provar que Deus deveria estar errado.
Era essa uma das características
de Adrián Guity. Escolher sempre o lado mais difícil. Ou seja, ele poderia ter
escolhido não ser um fraco. Mas preferiu provar o erro de Deus. Adrián deixou a
cidade de Yuscarán com treze anos e foi para Tegucigalpa fazer pela vida. Foi
viver com uma velha tia que há muitos anos já era empregada das limpezas nos
escritórios da capital. Adrián andava pelas ruas a ajudá-la. Acompanhava-a até
às casas onde ela trabalhava, saía para comprar algum produto que fosse
necessário e para fazer todos os recados possíveis e imagináveis.
Ao mesmo tempo que ia sendo moço
de recados, Adrián era também muito requisitado pelos jogos de futebol na rua
onde vivia. Pequeno como era, com a resistência de quem anda sem parar o dia
inteiro, Adrián era capaz de aguentar horas a jogar e a enfrentar rapazes com
quase o dobro do seu peso. E assim corria Adrián rua acima e rua abaixo, atrás
da bola, como quem se diverte ao mesmo tempo que sonha. Ele queria enganar
Deus, o que já sabia não ser fácil, mas era seguro que o facto de ser capaz de correr bastante poderia, um dia, vir
a ser uma boa ajuda.
A sorte de Adrián parecia estar a
mudar quando um dos patrões da sua tia o viu a brincar com uma bola na entrada
do prédio, enquanto esperava pelo fim de mais um dia de trabalho. Esse patrão
era também um dirigente do Clube Olimpia Deportivo, uma das grandes equipas
hondurenhas, onde Adrián acabou por fazer a sua formação futebolística. Rapaz
dedicado e determinado a enganar a sua sorte, Adrián continuava a passar o dia
a ajudar a sua tia, terminando a tarde a crescer como uma das grandes
esperanças do futebol daquele país da América Central.
Adrián Guity continuava a ter
toda a aparência de um fraco. Dentro de campo, ele era todo fragilidade
enquanto o árbitro não apitava para o início do jogo. Mas quando começava a
partida, Adrián transfigurava-se. Era vê-lo correr como um desalmado, disputar
cada bola como se o mundo pudesse acabar naquela jogada. Era um jogador tão
incansável que nenhum dos seus treinadores hesitava no momento de o colocar em
campo mais uma vez, por muitos jogos que disputasse. E a verdade é que ele
disputava mesmo muitos jogos, chegando a ser titular na equipa principal e
também na equipa B do Olimpia, acontecimento mais do que invulgar mas
justificável pelo facto de Adrián só se sentir bem em competição. Jogar às
quartas-feiras pela equipa B era, para ele, uma forma de treinar.
Tanta visibilidade valeu-lhe um
lugar na selecção, também esse, de forma algo surpreendente. No início do Verão
de 2001, a Argentina abdicou da sua participação na Copa América, alegando que
a Colômbia, país organizador, estava em guerra. Para o seu lugar foi convidada
a selecção das Honduras que, tendo já alguns dos seus jogadores em período de
férias, apresentou-se com uma equipa cheia de jovens esperanças. A Adrián Guity
coube vestir a camisola 12 e ficar sentado à espera da sua hora. Ele sempre
fora um jogador polivalente, capaz de jogar em todos os lados do campo. Sentia
que estar ali, na Copa América, era a sua oportunidade de provar a Deus que o
poderia mesmo enganar.
A selecção das Honduras disputou
a primeira fase da Copa em Medellín. Pouco se esperava deste conjunto de jovens
chamados à última hora, mas a verdade é que a história do futebol costuma ser
simpática para os bafejados por esta sorte. Depois de perder no primeiro jogo
com a Costa Rica, as Honduras surpreenderam com vitórias sobre o Uruguai e a
Bolívia, conseguindo o segundo lugar e a classificação para os
quartos-de-final. No dia 23 de Julho de 2001, entravam no Estádio de Manizales
as equipas do Brasil e das Honduras, num dos mais significativos encontros da
história do futebol hondurenho.
As camisolas de riscas verticais
azuis e brancas das Honduras dominaram sempre o jogo. Os jogadores do Brasil
pareciam meio adormecidos e contrariados por estarem naquela competição. Já os
jovens hondurenhos entregavam-se ao jogo, sentido cada um deles que caminhavam
na direcção do seu Olimpo pessoal. Assim foi para Saúl Martinez, que rematou
para o primeiro golo, confirmado pela falta de jeito de Belleti, e marcou o
segundo já nos descontos. Adrián Guity foi chamado para entrar logo a seguir a
esse golo. Entrou em campo apenas para ouvir o árbitro apitar para o fim do
jogo. Mas na memória de todos está o seu gesto, de joelhos no relvado, a fazer
um grande manguito para o céu. Adrián, o fraco, acabara de ganhar o seu lugar
no céu do futebol hondurenho. Deus perdera a aposta.
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