sábado, 27 de novembro de 2010

O orgulho de ser um Gardel


Não se nasce impunemente em Montevideu. Esta é uma frase muitas vezes repetida nas margens do Rio da Prata, sobretudo no velho porto onde homens de todas as idades e classes sociais se cruzam na noite com mulheres de má vida e com o seu próprio destino de perdição. Entre esses homens, é habitual ouvir velhos cantores de tangos que passam aos mais jovens muito do que é essa sensação de se ser do Rio da Prata. Os jovens chegam ao porto atraídos por lugares onde a identidade se encontra a cada esquina, esperando sempre ser algo mais do que aquilo que são realmente. Nem todos o conseguem encontrar.
No caso de Ignacio Escayola poderá dizer-se que pouco precisava de procurar. Ele próprio já era a identidade em pessoa. Escayola é um nome que provoca um sorriso de orgulho nos cantos de todas as bocas uruguaias. Segundo a lenda, Carlos Gardel, o grande cantor de tangos argentino, terá nascido no Uruguai, filho de um líder político regional de nome Escayola. A história nunca se terá confirmado, mas não é sem algum gozo que os uruguaios chamam a si um dos maiores símbolos do seu país vizinho. Ignacio seria um sobrinho-neto já distante na história mas, ainda assim, trazia no ADN familiar uma parte do orgulho de ser uruguaio.
Uma parte desse orgulho faz-se, aliás, desta matreirice de estar sempre à espera do erro alheio. O Uruguai nunca é o melhor em nada. No entanto, está sempre onde o outro erra. Onde o outro se distrai. O Brasil distraiu-se em 1950 e o Uruguai ganhou o Mundial. A Argentina não tratou de registar o Carlos Gardel e os uruguaios dizem que ele nasceu no seu país. São assim em tudo. Ignacio Escayola era assim dentro de campo. Poderia ser um grande jogador, mas era preguiçoso. Aproveitava, no entanto, como ninguém, todos os erros dos defesas adversários. E era vê-los desesperados quando Ignacio se escapava em direcção da baliza, a rematar sem piedade para o fundo das redes. Onde os outros falhavam, Escayola concretizava.
A vida de Escayola era fácil de contar. Nasceu (como se sabe, não impunemente) em Montevideu. Viveu sempre em Montevideu. Foi um jovem como os outros, faltou muitas vezes às aulas, correu para o porto em busca de mulheres fáceis e complicados poemas dentro de tangos, que o ajudaram a compor a sua mente um pouco perturbada. Quis ser jogador de futebol, prestou provas no Peñarol, no Nacional, mas acabou por ser jogador do Rampla Juniors, uma típica equipa de bairro da capital uruguaia. Não satisfeito com isso, vivia na ânsia de ser um Gardel, fugir para a Argentina, encontrar a felicidade em Buenos Aires, entre a descendência da sua família mítica.
O Rampla, não sendo uma grande equipa, joga na primeira divisão. Ignacio Escayola, não sendo um jogador muito dedicado, é normalmente titular da equipa. Um ponta de lança dos antigos, oportunista, pouco mais. Também à noite, no porto, vai encontrando as suas formas de viver. Escolhe uma mulher, rouba uma carteira, algum conhecido lhe paga um copo. Ignacio é respeitado nos locais que frequenta, pela história da sua família, pelos golos que vai marcando. Mas não é um homem feliz, não é um homem realizado. É um Escayola quando queria ser um Gardel. É um uruguaio quando queria ser argentino. Tudo se confunde no espírito de Ignacio.
Foi já no início deste ano de 2010, na primeira jornada do Torneio de Clausura do Uruguai, que Ignacio Escayola viveu o seu dia d. Foi nesse dia que, na sua cabeça, todas as coisas encontraram um sentido. Nessa tarde de domingo, 24 de Janeiro, o Rampla Juniors encontrou a equipa do Cerro, seus grandes rivais. E o jogo não podia ter começado melhor, com Ignacio Escayola a marcar por duas vezes, aos 47 e 55 minutos de jogo, aproveitando deslizes da defesa adversária. Tudo pareceria perfeito, indicando finalmente a chegada do Ramplas Juniors ao ponto alto da sua história. No entanto, o destino, o tango, não era isso que previa para o final do encontro. Com Ignacio e os seus colegas já perfeitamente esgotados de defender o resultado, a equipa do Cerro conseguiu marcar por duas vezes em tempo de descontos e conquistou um inesperado empate.
Para Ignacio Escayola, foi mais do que uma falta de pernas. Para ele, que era ainda um jovem um tanto inconsciente, com os seus vinte e quatro anos, foi o sinal de que o futebol não era para ele. Decidiu isso quando num dos bares do porto, ouvia o seu famoso tio Carlos Gardel, cantar “Por una Cabeza”, como que lhe dizendo que as coisas nos fogem entre os dedos por quase nada. Ignacio não iria deixar mais que o destino lhe fugisse. Bebeu tudo o que pôde, cumprimentou todos os amigos e o dono do bar como se voltasse na noite seguinte, pediu até que o deixassem pagar a conta mais tarde, o que era costume habitual e permitido entre os clientes habituais. Ignacio Escayola nunca mais apareceu. Uns dizem que anda por Buenos Aires, em busca da sua outra família. Outros que fugiu para França, onde sobrevive cantando tangos, fazendo biscates, pequenos roubos. Ignacio Escayola, onde estiver, com certeza que dirá, com ar pesado e dramático: morri no Estádio Centenário, em Montevideu, a 24 de Janeiro de 2010.

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