Chamem-lhe falta de imaginação,
superstição ou uma noção bem real daquilo que lhes estava destinado. Nascidos
gémeos em Douala, Camarões, foram baptizados os irmãos com os nomes René Edoua
I e René Edoua II. Na verdade, foi por uma questão de falta de hábito. Na
família Edoua nunca haviam nascido gémeos, apesar das suas origens serem
longínquas e o número de filhos, em cada geração, exagerado. Mas gémeos, não,
nunca. E perante a necessidade de registar as duas crianças, o pai Edoua não
foi de modas. Deu-lhes o mesmo nome, até porque a taxa de mortalidade infantil
da região não lhe garantia que chegassem os dois à idade adulta.
Na verdade, nada de tão trágico
lhes estava destinado. René I e René II cresceram saudáveis e corpulentos.
Andaram na escola, fizeram amigos, encontraram namoradas, frequentaram festas.
Eram irmãos bastante unidos, normalmente onde estava um, logo se encontrava o
outro. Saíam de casa à mesma hora, sentavam-se na mesma carteira na escola (as
suas notas eram quase sempre iguais), frequentavam o mesmo café, iam aos mesmos
bares, sempre, sempre juntos. Só havia uma coisa que não faziam juntos. Jogar
futebol. Nesse momento, enquanto um estava em campo, o outro ficava sempre na
bancada.
No futebol havia apenas um René
Edoua. Era um jogador estranho, incompreensível para a generalidade dos seus
treinadores e colegas de equipa. O René Edoua era um jogador muito trabalhador
durante os treinos semanais, dedicado, sempre pronto para todos os exercícios,
por mais duros que fossem. No entanto, era um jogador de qualidade técnica
inferior, quase nula. Ainda assim, era sempre convocado, muitas das vezes para
ser titular. Porquê? Porque em jogos do campeonato, René Edoua
transfigurava-se. Passava a ser um jogador mais lento, menos trabalhador, mas
sempre que a bola lhe chegava aos pés, criava magia e, muitas vezes, golos.
René formou-se no Union Douala.
Sendo uma das equipas principais do campeonato local, era normal que olheiros
frequentassem os jogos e aliciassem os jovens jogadores para contratos na
Europa. E assim foi com René. No Verão de 1989, assinou contrato com o Racing
de Paris, a mítica equipa da capital, nessa época já em declínio. René Edoua
seguiu para França e, com ele, o seu irmão. O estranho comportamento manteve-se
em França. René Edoua era ainda esse jogador multifacetado, pé duro trabalhador
durante a semana, craque pleno de magia aos domingos. Mas, em França, esta
dualidade não chegou para convencer o treinador Artur Jorge. E ao fim de dois
meses foi levado para a equipa B do Racing.
Na equipa B do Racing, René Edoua
marcou golos, encantou seguidores, fez a festa sozinho. O seu comportamento nos
treinos era considerado como uma inadaptação ao ritmo europeu, coisa que ele
compensava nos jogos. Fez tanto furor nas divisões secundárias francesas que o
treinador da selecção dos Camarões se decidiu a convocá-lo para o Mundial de
Futebol disputado em Itália. Foi uma surpresa na convocatória, mas como bem
defendia Valeri Nepomniatchi, as divisões secundárias da Europa tinham tanto ou
mais ritmo do que o Campeonato Camaronês, e
ele precisava de todo o talento que pudesse encontrar. Afinal, em África
tudo era possível.
René Edoua fez questão de levar o
seu irmão consigo para o estágio. Era conhecida a necessidade de se manterem
juntos, por isso a Federação autorizou a sua presença. O surpreendente
aconteceu, exactamente, durante um treino em que um dos elementos convocados se
lesionou e teve que sair de jogo. O treinador Nepomniatchi chamou o irmão Edoua
que estava na linha lateral, pedindo-lhe que participasse do treino, de modo a
manterem duas equipas de onze elementos. O René Edoua que até aí estava em
campo, era o René que se esforçava e dedicava aos treinos. Da linha lateral
surgiu então o René Edoua dos jogos, René Edoua I, um verdadeiro preguiçoso da
bola, mas tocado pelo toque da genialidade que lhe permitia ser uma das grandes
promessas do futebol camaronês.
Valeri Nepomniatchi, ainda assim,
não pareceu surpreendido. Pelo contrário, parecia já contar com isso há algum
tempo, quando havia permitido a presença de ambos os irmãos Edoua no estágio. E
como o outro elemento convocado não recuperaria a tempo, decidiu levar Edoua I
e Edoua II ao Mundial. O primeiro com contrato assinado pelo Racing de Paris, o
segundo sem qualquer equipa. No entanto, ambos os jogadores com jogos e treinos
nas pernas. Para Nepomniatchi, os dois irmãos completavam-se. Edoua I como um
génio que resolve jogos, Edoua II como o elemento dedicado que defende a sua
equipa até a comer relva.
No dia 8 de Junho de 1990, o
mundo ficou a conhecer os dois irmãos. Foi o primeiro jogo oficial que fizeram
juntos. René Edoua I foi titular da equipa, enfrentando os, até aí, campeões mundiais,
liderados por Diego Maradona. A selecção dos Camarões surpreendeu pela
velocidade, pelo contra-ataque, pela imaginação que cada um dos jogadores levou
para campo. Adiantando-se no marcador a meio da segunda parte, Nepomniatchi fez
entrar René Edoua II, que se evidenciou nos últimos quinze minutos a evitar
qualquer possibilidade de golo da Argentina. Nem um nem outro voltaram ao
Racing de Paris, que havia entretanto descido de divisão. Continuaram na
Europa, sempre juntos, a continuar o sonho que tinha sido de um só, agora
multiplicado num par de gémeos, de seu semelhante nome, René Edoua.
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