sábado, 13 de novembro de 2010

Enganar Deus


Adrián Guity sempre se lembrou perfeitamente do que ouviu na Igreja de Yuscarán, no distrito de El Paraíso, no sul das Honduras. O padre gritou a meio do sermão “fraco não pode ir para o céu”, coisa que muito impressionou o pequeno Adrián. Podia ter-se entregue ao medo de ser um fraco para o resto da vida, visto que as suas circunstâncias do momento se resumiam a uma vida de dificuldades numa família pobre daquele pequeno distrito hondurenho. Mas, daquele dramático sermão, o pequeno Adrián retirou a vontade de provar que Deus deveria estar errado.
Era essa uma das características de Adrián Guity. Escolher sempre o lado mais difícil. Ou seja, ele poderia ter escolhido não ser um fraco. Mas preferiu provar o erro de Deus. Adrián deixou a cidade de Yuscarán com treze anos e foi para Tegucigalpa fazer pela vida. Foi viver com uma velha tia que há muitos anos já era empregada das limpezas nos escritórios da capital. Adrián andava pelas ruas a ajudá-la. Acompanhava-a até às casas onde ela trabalhava, saía para comprar algum produto que fosse necessário e para fazer todos os recados possíveis e imagináveis.
Ao mesmo tempo que ia sendo moço de recados, Adrián era também muito requisitado pelos jogos de futebol na rua onde vivia. Pequeno como era, com a resistência de quem anda sem parar o dia inteiro, Adrián era capaz de aguentar horas a jogar e a enfrentar rapazes com quase o dobro do seu peso. E assim corria Adrián rua acima e rua abaixo, atrás da bola, como quem se diverte ao mesmo tempo que sonha. Ele queria enganar Deus, o que já sabia não ser fácil, mas era seguro que o facto de ser  capaz de correr bastante poderia, um dia, vir a  ser uma boa ajuda.
A sorte de Adrián parecia estar a mudar quando um dos patrões da sua tia o viu a brincar com uma bola na entrada do prédio, enquanto esperava pelo fim de mais um dia de trabalho. Esse patrão era também um dirigente do Clube Olimpia Deportivo, uma das grandes equipas hondurenhas, onde Adrián acabou por fazer a sua formação futebolística. Rapaz dedicado e determinado a enganar a sua sorte, Adrián continuava a passar o dia a ajudar a sua tia, terminando a tarde a crescer como uma das grandes esperanças do futebol daquele país da América Central.
Adrián Guity continuava a ter toda a aparência de um fraco. Dentro de campo, ele era todo fragilidade enquanto o árbitro não apitava para o início do jogo. Mas quando começava a partida, Adrián transfigurava-se. Era vê-lo correr como um desalmado, disputar cada bola como se o mundo pudesse acabar naquela jogada. Era um jogador tão incansável que nenhum dos seus treinadores hesitava no momento de o colocar em campo mais uma vez, por muitos jogos que disputasse. E a verdade é que ele disputava mesmo muitos jogos, chegando a ser titular na equipa principal e também na equipa B do Olimpia, acontecimento mais do que invulgar mas justificável pelo facto de Adrián só se sentir bem em competição. Jogar às quartas-feiras pela equipa B era, para ele, uma forma de treinar.
Tanta visibilidade valeu-lhe um lugar na selecção, também esse, de forma algo surpreendente. No início do Verão de 2001, a Argentina abdicou da sua participação na Copa América, alegando que a Colômbia, país organizador, estava em guerra. Para o seu lugar foi convidada a selecção das Honduras que, tendo já alguns dos seus jogadores em período de férias, apresentou-se com uma equipa cheia de jovens esperanças. A Adrián Guity coube vestir a camisola 12 e ficar sentado à espera da sua hora. Ele sempre fora um jogador polivalente, capaz de jogar em todos os lados do campo. Sentia que estar ali, na Copa América, era a sua oportunidade de provar a Deus que o poderia mesmo enganar.
A selecção das Honduras disputou a primeira fase da Copa em Medellín. Pouco se esperava deste conjunto de jovens chamados à última hora, mas a verdade é que a história do futebol costuma ser simpática para os bafejados por esta sorte. Depois de perder no primeiro jogo com a Costa Rica, as Honduras surpreenderam com vitórias sobre o Uruguai e a Bolívia, conseguindo o segundo lugar e a classificação para os quartos-de-final. No dia 23 de Julho de 2001, entravam no Estádio de Manizales as equipas do Brasil e das Honduras, num dos mais significativos encontros da história do futebol hondurenho.
As camisolas de riscas verticais azuis e brancas das Honduras dominaram sempre o jogo. Os jogadores do Brasil pareciam meio adormecidos e contrariados por estarem naquela competição. Já os jovens hondurenhos entregavam-se ao jogo, sentido cada um deles que caminhavam na direcção do seu Olimpo pessoal. Assim foi para Saúl Martinez, que rematou para o primeiro golo, confirmado pela falta de jeito de Belleti, e marcou o segundo já nos descontos. Adrián Guity foi chamado para entrar logo a seguir a esse golo. Entrou em campo apenas para ouvir o árbitro apitar para o fim do jogo. Mas na memória de todos está o seu gesto, de joelhos no relvado, a fazer um grande manguito para o céu. Adrián, o fraco, acabara de ganhar o seu lugar no céu do futebol hondurenho. Deus perdera a aposta.  

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