sábado, 18 de dezembro de 2010

A multiplicação do craque


Chamem-lhe falta de imaginação, superstição ou uma noção bem real daquilo que lhes estava destinado. Nascidos gémeos em Douala, Camarões, foram baptizados os irmãos com os nomes René Edoua I e René Edoua II. Na verdade, foi por uma questão de falta de hábito. Na família Edoua nunca haviam nascido gémeos, apesar das suas origens serem longínquas e o número de filhos, em cada geração, exagerado. Mas gémeos, não, nunca. E perante a necessidade de registar as duas crianças, o pai Edoua não foi de modas. Deu-lhes o mesmo nome, até porque a taxa de mortalidade infantil da região não lhe garantia que chegassem os dois à idade adulta.
Na verdade, nada de tão trágico lhes estava destinado. René I e René II cresceram saudáveis e corpulentos. Andaram na escola, fizeram amigos, encontraram namoradas, frequentaram festas. Eram irmãos bastante unidos, normalmente onde estava um, logo se encontrava o outro. Saíam de casa à mesma hora, sentavam-se na mesma carteira na escola (as suas notas eram quase sempre iguais), frequentavam o mesmo café, iam aos mesmos bares, sempre, sempre juntos. Só havia uma coisa que não faziam juntos. Jogar futebol. Nesse momento, enquanto um estava em campo, o outro ficava sempre na bancada.
No futebol havia apenas um René Edoua. Era um jogador estranho, incompreensível para a generalidade dos seus treinadores e colegas de equipa. O René Edoua era um jogador muito trabalhador durante os treinos semanais, dedicado, sempre pronto para todos os exercícios, por mais duros que fossem. No entanto, era um jogador de qualidade técnica inferior, quase nula. Ainda assim, era sempre convocado, muitas das vezes para ser titular. Porquê? Porque em jogos do campeonato, René Edoua transfigurava-se. Passava a ser um jogador mais lento, menos trabalhador, mas sempre que a bola lhe chegava aos pés, criava magia e, muitas vezes, golos.
René formou-se no Union Douala. Sendo uma das equipas principais do campeonato local, era normal que olheiros frequentassem os jogos e aliciassem os jovens jogadores para contratos na Europa. E assim foi com René. No Verão de 1989, assinou contrato com o Racing de Paris, a mítica equipa da capital, nessa época já em declínio. René Edoua seguiu para França e, com ele, o seu irmão. O estranho comportamento manteve-se em França. René Edoua era ainda esse jogador multifacetado, pé duro trabalhador durante a semana, craque pleno de magia aos domingos. Mas, em França, esta dualidade não chegou para convencer o treinador Artur Jorge. E ao fim de dois meses foi levado para a equipa B do Racing.
Na equipa B do Racing, René Edoua marcou golos, encantou seguidores, fez a festa sozinho. O seu comportamento nos treinos era considerado como uma inadaptação ao ritmo europeu, coisa que ele compensava nos jogos. Fez tanto furor nas divisões secundárias francesas que o treinador da selecção dos Camarões se decidiu a convocá-lo para o Mundial de Futebol disputado em Itália. Foi uma surpresa na convocatória, mas como bem defendia Valeri Nepomniatchi, as divisões secundárias da Europa tinham tanto ou mais ritmo do que o Campeonato Camaronês, e  ele precisava de todo o talento que pudesse encontrar. Afinal, em África tudo era possível.
René Edoua fez questão de levar o seu irmão consigo para o estágio. Era conhecida a necessidade de se manterem juntos, por isso a Federação autorizou a sua presença. O surpreendente aconteceu, exactamente, durante um treino em que um dos elementos convocados se lesionou e teve que sair de jogo. O treinador Nepomniatchi chamou o irmão Edoua que estava na linha lateral, pedindo-lhe que participasse do treino, de modo a manterem duas equipas de onze elementos. O René Edoua que até aí estava em campo, era o René que se esforçava e dedicava aos treinos. Da linha lateral surgiu então o René Edoua dos jogos, René Edoua I, um verdadeiro preguiçoso da bola, mas tocado pelo toque da genialidade que lhe permitia ser uma das grandes promessas do futebol camaronês.
Valeri Nepomniatchi, ainda assim, não pareceu surpreendido. Pelo contrário, parecia já contar com isso há algum tempo, quando havia permitido a presença de ambos os irmãos Edoua no estágio. E como o outro elemento convocado não recuperaria a tempo, decidiu levar Edoua I e Edoua II ao Mundial. O primeiro com contrato assinado pelo Racing de Paris, o segundo sem qualquer equipa. No entanto, ambos os jogadores com jogos e treinos nas pernas. Para Nepomniatchi, os dois irmãos completavam-se. Edoua I como um génio que resolve jogos, Edoua II como o elemento dedicado que defende a sua equipa até a comer relva.
No dia 8 de Junho de 1990, o mundo ficou a conhecer os dois irmãos. Foi o primeiro jogo oficial que fizeram juntos. René Edoua I foi titular da equipa, enfrentando os, até aí, campeões mundiais, liderados por Diego Maradona. A selecção dos Camarões surpreendeu pela velocidade, pelo contra-ataque, pela imaginação que cada um dos jogadores levou para campo. Adiantando-se no marcador a meio da segunda parte, Nepomniatchi fez entrar René Edoua II, que se evidenciou nos últimos quinze minutos a evitar qualquer possibilidade de golo da Argentina. Nem um nem outro voltaram ao Racing de Paris, que havia entretanto descido de divisão. Continuaram na Europa, sempre juntos, a continuar o sonho que tinha sido de um só, agora multiplicado num par de gémeos, de seu semelhante nome, René Edoua. 

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